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Um autoretrato passado de um futuro inacabado.



    
     O filtro que permeia a minha vida é cheio de furos, rachaduras e manchas da cor do coador de café. Às vezes penso que ele nunca existiu. Em outras, a presença dele, tão intensa, me faz crer que sempre esteve ali, e eu, acostumado, nunca reparei tanto. É um traço forte. Talvez seja impressão minha, mas no entanto, preferiria que o tempo fosse capturado, espancado e por fim domado. 

     Não, eu não consigo acreditar nas  leves palavras que ele me sussurra enquanto rouba de mim uma juventude mal aproveitada e que por isso sinto tanto a falta. Mais uma vez, lamento a ausência de percepção minha e como forma de enganá-lo, tento em vão passar noites em claros divagando sobre assuntos nem tão corriqueiro, assuntos que não posso expor sem ser julgado, mal visto e até mesmo compreendido. 

     Meu filtro está tanto pra mim, quanto eu me ausentei dele. É uma parte externa, algo que saiu de mim e tomou minha imagem, e eu sei que isso não sou eu. Nunca foi. Mas eu deixo que acreditem que seja. Por covardia? Por proteção das vezes que tanto ouvi argumentos, pessoas que não gostam de pessoas assim, muito menos assado; comentários que foram moldando o filtro que hoje é o meu retrato. Mas com que coragem irei eu apagar essa imagem? Me libertar de uma tela nada representativa e além do mais tão feia? Pra ser sincero, não sei.

     É difícil a tarefa da transformação. As lagartas sabem muito bem disso, afinal, passam por um processo árduo, até que batam asas, sendo que elas tanto trabalharam para ser o que vão se tornar um dia. 

     Falta em mim essa persistência animalesca, que faça com que o meu retrato, enfim, fique no passado e apenas o meu auto seja exaltado como quem eu sou, ou a potencialidade do que eu possa chegar a ser. Sem adição de imagens, filtros ou pré-seleções de uma triagem que me leva a ser o que não me sinto feliz, apenas na intenção de satisfazer as necessidades de uma vida preenchida de afetos condizentes com as formalidades sociais convenientes.

     Todavia, a vida é isso. É um constante ajuste de uma calça comprada com um número maior que o que usamos por não encontrarmos uma do tamanho adequado para as nossas medidas. Se tira um pouco, coloca um ponto ali, outro aqui, se ajusta até caber em nós, no entanto, apesar da aparência boa, as marcas das costuras e de todas as regulagens continuam ali perceptíveis aqueles que usam a calça, embora estética e exteriormente esteja bem apessoada para quem a vê de fora. 

X.X.X

P.S.: O texto não necessariamente representa o autor, sendo a imagem meramente ilustrativa.


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